O que o polêmico cartaz do Dead Kennedys tem a nos dizer?

O NA-NU traz uma análise da ilustração do cartaz da turnê brasileira da banda punk Dead Kennedys que viralizou causou polêmica na internet.

Recentemente, a produção brasileira da turnê que comemora 40 anos da banda punk Dead Kennedys divulgou um cartaz produzido pelo ilustrador Cristiano Suarez que causou choque e polêmica. Após a viralização do cartaz nas redes sociais a banda, que também chegou a divulgar o cartaz em suas redes oficiais, publicou uma nota “des-oficializando” o cartaz dizendo, “O Dead Kennedys é uma banda punk americana icônica que é conhecida por suas declarações políticas e assume uma forte posição antifascista, antiviolência, no entanto, a banda sente que não pode presumir saber o suficiente sobre situações em outros países para entrar em suas políticas específicas. O cartaz liberado não reflete uma declaração política ou posição do Dead Kennedys.” Pouco depois, a nota foi apagada do perfil da banda. Em sua página do facebook, o artista responsável pela arte declarou que “só queria reforçar que a arte foi sim oficial, diferente do que a mídia tá publicando. Foi postada no perfil OFICIAL da banda e removido logo após o boom das publicações e dos trending topics do Twitter, logo depois foi liberada uma nota, que também foi apagada quando se deram conta que muitas pessoas já tinham visto.”

Oficial ou não, o NA-NU sente que vale a pena fazer uma análise da rica e provocativa ilustração do cartaz.

Quem é Dead Kennedys?

Dead Kennedys é uma das mais influentes bandas punk, considerada uma das precursoras do hard core, formada no final dos anos 70. Tendo como uma de suas principais características as críticas inteligentes, políticas e sarcásticas ideologias de líderes, o “American Way of Life”, as guerras, os políticos liberais conservadores e entidades religiosas fundamentalistas de posição política conservadora. O vocalista, letrista e co-fundador dos Kennedys, Jello Biafra, era o principal responsável pela identidade e caráter político e ideológico da banda. Em 1986 a banda lança Bedtime for Democracy (Hora de dormir para a Democracia), último álbum de inéditas do grupo, trazendo hits como Anarchy for Sale (Anarquia a Venda). Depois desse trabalho os Kennedys resolvem se separar e dar continuidade aos projetos pessoais de cada um. Biafra seguiu carreira solo, participou de discos de outros artistas (como o Ministry e o Sepultura) e com seu selo, a Alternative Tentacles, passou a produzir outras bandas. Em 2001, trazidos pela produtora independente Ataque Frontal, o grupo realizou um controverso show no Brasil, sem o vocalista Jello Biafra, que criticou a banda remanescente por ser gananciosa, dizendo em entrevista que “Eles foram à América do Sul enganar os fãs, os fãs têm que decidir se eles querem ou não fazer parte desta farsa”. Em 2008 Jello formou uma nova banda chamada Jello Biafra and the Guantanamo School of Medicine para se apresentar na festa de seu aniversário de 50 anos, a banda gravou um disco em 2009 e realizou uma extensa turnê que passou pelo Brasil. A formação atual da banda, que vem ao Brasil em maio conta com os integrantes originais East Bay Ray, Klaus Flouride além de D.H. Peligro, baterista desde 1981 e o vocalista Skip, na banda desde 2008.

Quem é Cristiano Suarez, artista responsável pela arte?

Cristiano Suarez é ilustrador, designer e diretor de arte de Maceió, Alagoas, que já produziu arte para bandas como Ratos de Porão, Stranhos Azuis e Laptop Funkers, além de inúmeras ilustrações para publicidade e eventos.

O cartaz do Dead kennedys havia sido encomendado à Cristiano pelo produtor brasileiro da turnê Eliel Vieira, dono da produtora de ventos EV7 Live. Em entrevista ao portal globo.com, Eliel afirmou que Suarez teve liberdade para fazer a ilustração, por ser fã da banda e já ter trabalhado em cartazes de outras turnês da empresa. “Ele conhece a discografia e história. Fez um trabalho bem legal.”. Antes da polêmica, Cristiano havia postado o cartaz em sua página no Instagram afirmando “O tipo de trabalho que dá orgulho de fazer! Dead Kennedys sempre foi minha banda de hardcore predileta, desde a época que eu era moleque”.

A Família

A “Família tradicional” tem sido usada como símbolo e bandeira dos movimentos conservadores a muito tempo. No Brasil, a “família tradicional” virou símbolo dos movimentos radicais de direita, do discurso conservador e da paranoia anti-comunista. Famílias inteiras vestidas com a camiseta da seleção brasileira de futebol, pedindo o fim da democracia, a volta da ditadura e apoiando a violência e opressão policial/militar se tornaram extremamente comuns, nas ruas e nas redes sociais. Em resposta, também é o símbolo utilizado a tempos em muitas críticas visuais ao discurso conservador.

A camisa da seleção

Como mencionado acima, a camiseta da seleção, que além de símbolo da seleção brasileira de futebol, apelidada de “seleção canarinho” pela cor amarela, sempre foi tida como uma manifestação de patriotismo e respeito ao país. Porém, desde as manifestações de 2013, a camiseta se tornou uniforme de um movimento, carinhosamente apelidado de “coxinha”, que é caracterizado pelo discurso conservador, pela paranoia e ignorância política e por sua maioria de brancos, de classe-média e média alta.

A cruz

Nas camisetas utilizadas pela família no cartaz, o escudo da CBF foi substituído por um crucifixo. Uma referência clara a ação de grupos ditos cristãos na política e na manipulação de ideias que incentivou e alimentou o discurso conservador e de extrema direita no Brasil. A doutrina cristã, que deveria ser um discurso de amor, compaixão e perdão é usada por poderosos grupos radicais para se espalhar o ódio, a desinformação e o preconceito.

 

A braçadeira

O sigma que aparece na braçadeira usada pelos personagens da ilustração era o símbolo da Ação Integralista Brasileira (AIB) foi um movimento político fascista e nacionalista brasileiro criado em 1932 por Plínio Salgado. Os integralistas também ficaram conhecidos como camisas-verdes ou, satiricamente, como galinhas-verdes por seus opositores, em referência à cor dos uniformes que utilizavam. O integralismo brasileiro ideologicamente defende a propriedade privada, o resgate da cultura nacional, o moralismo, valoriza o nacionalismo, os valores morais prática cristã, o princípio da autoridade (e portanto a estrutura hierárquica da sociedade), o combate ao comunismo e ao liberalismo econômico. Plínio Salgado defendia que “a burguesia não é uma classe, é um estado de espírito”.

A fala e a favela em chamas

No cartaz, um dos filhos da família aparece dizendo a seguinte frase em inglês “I love the smell of poor dead in the morning!” (Eu amo o cheiro de pobres mortos pela manhã). O texto é uma referência à icônica fala do filme de 1979 do diretor Francis Ford Coppola, Apocalypse Now, “I love the smell of napalm in the morning” (Eu amo o cheiro de napalm pela manhã), dita pelo personagem Bill Kilgore, interpretado por Robert Duvall. Napalm é um conjunto de líquidos inflamáveis à base de gasolina gelificada, utilizados como armamento militar. O napalm é na realidade o agente espessante de tais líquidos, que quando misturado com gasolina a transforma num gel pegajoso e incendiário. A utilização do napalm na Guerra do Vietnã consistiu na rápida abertura de clareiras para a aterrissagem de helicópteros.

No cartaz, a fala, assim como a favela em chamas, faz uma referência ao discurso simplista e preconceituoso, muito presente no momento atual brasileiro, de que a violência contra os moradores de favelas, invasões e comunidades mais necessitadas é a solução para erradicar o crime no Brasil.

O balão, assim como a imagem da explosão atômica e das chamas na favela, também remete ao clássico de 1978 do Dead Kennedys, Kill the Poor, letra que ironiza esse discurso de “resolva os problemas matando os pobres”. A música diz, “A eficiência e o progresso serão nossos mais uma vez, agora nós temos a bomba de nêutrons, abaixo ao excesso de inimigos, mas não ao valor da propriedade (…) todos os sistemas irão matar os pobres essa noite. Mate os pobres”

Os palhaços

Em entrevista ao portal G1, o produtor Eliel Vieira comentou que “O palhaço que aparece no pôster é uma referência a uma música da banda, Rambozo the clown. É um personagem da história das músicas da banda, não tem nenhuma segunda intenção com alguma figura da política brasileira.”

Realmente Rambozo é o personagem apresentado na canção Rambozo The Clown, onde a letra genial de Jello biafra faz um paralelo ao consumismo infantil e as ideias que vendem ao público para mandar seus filhos à guerra “Que nunca deveria ter começado, pra começo de conversa”.

Porém é muito difícil não fazer a associação com o apelido de “Bozo“, dado ao atual presidente e seus seguidores. Os palhacinhos Bozo que aparecem na parte de baixo do cartaz, saindo dos tanques de guerra, são bem parecidos com a versão brasileira do palhaço americano Bozo, e lembram muito o frasco de “shampoonete do Bozo”, vendido por aqui nos anos 80.

As armas, os tanques

A família que protagoniza o cartaz segura armas de fogo. Uma clara referência ao discurso armamentista da atual administração o país, que insiste que a facilitação ao porte de armas é a solução para a segurança do povo brasileiro contra o crime. Um discurso importado dos EUA, país ondem 2.715 crianças morrem por ano em acidentes envolvendo armas de fogo, e onde já ficou muito claro que a facilitação ao porte de armas é muito mais um problema, do que uma solução.

Studio na Colab55

O caráter militarista/armamentista fica ainda mais claro com os tanques de guerra que aparecem na parte inferior do cartaz, estampados com uma versão idiotizada da bandeira brasileira, pilotados por palhaços Bozo armados e atirando por seus canos bandeiras que lembram a bandeira nazista, mas com cifrões no lugar das suásticas, lembrando que por trás de toda essa ideologia radical, existem interesses bem materialistas e quantificáveis.

A apropriação do cartaz

Com a “desoficialização” do cartaz por parte dos integrantes do Dead Kennedys, que já divulgam uma nova arte que só estampa o clássico logotipo da banda, outras bandas do underground brasileiro se apropriaram da arte. Com destaque para o Ratos de Porão, que usou a arte para divulgar os shows de comemoração aos 30 anos de seu disco Brasil. O álbum tem como capa uma arte, produzida pelo legendário Marcatti tão rica e detalhada quanto a polêmica arte em questão.

O excelente canal Meteoro Brasil fez um vídeo sobre o assunto que o NA-NU recomenda. Confere lá.

Quer mais arte, cultura e entretenimento? Continue NA-NUZEANDO