A coluna Revisitando desta edição traz o jogo Orwell: Keeping An Eye On, inspirado na grande obra de George Orwell, 1984.
Guerra é paz
Liberdade é escravidão
Ignorância é força
Poucas vezes excertos de um livro se tornam tão memoráveis assim. 1984, de George Orwell, é uma das maiores obras da literatura pós-segunda guerra (e de todos os tempos!), e, em Orwell, jogo de 2016, você quase que assume o papel do Grande Irmão, a figura enigmática e onipresente da distopia, espionando e investigando a vida de cada um dos cidadãos da “Nação”. Assim como esse texto introdutório, é impossível separar o jogo do livro, e é por isso que tive tanta vontade de “revisitar” Orwell — pois é tudo o que o povo (eu) gosta: ler um monte de texto e se intrigar com ele.
Mas, a princípio, vamos focar no jogo. O que é, então, o tal do Orwell? Num país distante, chamado meramente de “The Nation”, um projeto para investigar crimes é criado; e você é recrutado para testar sua eficiência. Você, onde é que você esteja nesse mundo, será o “investigador”, e terá de passar informações que julgar relevante ao seu “conselheiro”, que processará essas informações e julgará o investigado. Disso, podemos entender uma coisa: a verdade está em suas mãos. Só você tem acesso aos dispositivos dos investigados (desde que encontre os dados necessários para tal), e o que você compartilha como relevante depende só de você. A verdade é manipulável. Há uma frase em 1984 que diz: “quem controla o presente, controla o passado”, e você, com o controle do que é informado, pode manipular a verdade, criar um passado ou ocultá-lo: a verdade é sua. Mas você não trairá os propósitos da Nação, não é?
O jogo começa com um atentado a bomba numa praça da “Nação”. Lá mesmo, as câmeras identificam uma garota que esteve recentemente envolvida num caso polêmico, tendo uma ficha criminal, e é a partir dela que as coisas se desenrolam. Apesar do Revisitando permitir certos tipos de spoiler, evitarei ao máximo qualquer tipo de informação reveladora sobre a narrativa de Orwell, já que ele depende totalmente dela pra mostrar suas forças. Mas uma coisa eu garanto: é boa; cheia de surpresas (uhu!). O jogo é tão bom em te passar a sensação de que você realmente está trabalhando para a Nação que você, na primeira jogatina, provavelmente vai ficar receoso de ocultar informações do Orwell. Saiba, entretanto, que é exatamente como eu disse: a verdade é sua. Mas, a princípio, acho que ser um cachorrinho do governo e obedecer cegamente as suas instruções vai te garantir uma história tão boa quanto a que você teria se ocultasse tudo e só enviasse piadinhas pro conselheiro. De toda forma, esse sentimento de que o que você envia MUDA algo é digno de nota.
Em Orwell, você tem à disposição três tecnologias pra fuçar a vida alheia, dispostos ali no canto superior direito. O Reader é o menos intrusivo de todos; nele você apenas terá acesso a documentos públicos (há exceções), como perfil numa rede social, um artigo num blog, o site de um grupo de amigos, etc. Através do Reader é que você construirá boa parte das informações básicas do investigado, e poderá passar pro que realmente interessa: aquilo que ele esconde, o que é privado. Então vem o Listener, onde você terá acesso às conversas de texto e de voz, assim como e-mails; é aqui que você descobrirá boa parte dos podres desses indivíduos distantes, que você realmente sentirá o poder do Orwell. E, por fim, temos o Insider, que é o acesso ao computador do investigado; e é aqui que você encontrará o que há de mais privado de cada um, pois é algo que apenas eles tem acesso. Usando essas três ferramentes, tudo se revelará — e graças a você e sua fome de saber o que tal sujeito faz em seus momentos particulares.
É admirável como a atmosfera de Orwell te domina, te faz sentir parte daquilo ali como se fosse a própria realidade. A sociedade distópica da Nação, aparentemente normal em sua superfície, exatamente como as de Orwell e Huxley (Admirável Mundo Novo), mostra seu lado oculto, suas ideias obscuras, seus propósitos nefastos e você realmente se sente no meio disso. Poucos jogos me deixaram tão “ligadaços” assim na história, nos personagens, naquele universo; tudo é tão bem construído e convincente, de certa forma, é como se realmente houvesse um mundo ali dentro, não apenas aquilo que você vê e julga. Dos sites, da naturalidade de cada personagem, de suas vidas íntimas, seus propósitos, tudo parece se encaixar tão bem, ser tão… nós. Talvez seja um exagero exaltar tanto esse aspecto, mas sinto que seria injusto apenas uma breve passada. E Orwell é isso, depende disso; e, nisso, faz muito bem.
Numa época de Black Mirror, onde as conspirações envolvem tudo o que há de mais tech’, Admirável Mundo Novo, 1984 e Fahrenheit 451 podem ter perdido um pouco do charme, mas Orwell junta tudo isso, criando um jogo que une os dois mundos. Apesar de ser um jogo que eu indicaria mais pra quem gosta de ler (porque é basicamente a única coisa que você faz), creio que vale a tentativa praqueles que não têm o costume também, afinal, uma coisinha nova hora e outra não faz mal a ninguém. O futuro da Nação está em suas mãos, investigador, contamos com você!
Orwell, meus grandes irmãos!
P.s: Ah, por sinal, eventualmente deve sair uma tradução em PT-BR, com um leve suporte da produtora, e alguns dos textos talvez tenham sido traduzidos por moi, o que é legal demais pra manter na surdina!!! Por sinal, pra quem quiser ajudar ou dar uma averiguada nesse tipo de iniciativa, é só dar uma visitada no site “Crowdin”.
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O legal é que está sendo feito a tradução para o Português do Brasil. 🙂