Sketchmacumba, a Umbanda pelo olhar de Fabiano Vianna

Em Sketchmacumba, o artista visual Fabiano Vianna aplica seus seus olhares artísticos para registrar a Umbanda com dignidade e reverência

sketch (em português: esboço) é um estilo de desenho de observação feito in loco, que procura capturar a vida cotidiana a partir da experiência direta, enquanto ela acontece. Os Sketchmacumbas são desenhos mediúnicos, com traços velozes, feitos pelo artista visual Fabiano Vianna com nanquim e aquarela durante as giras de Umbanda. “Deixo a mão ser guiada pelas entidades, para que apareçam coisas que eles desejam mostrar. Os traços revelam também vestimentas e elementos que os espíritos trabalham. Parentes, mensagens, objetos. Ao terminar, mostro para os médiuns e pais de santos. Interpretamos juntos. Muitas coisas acabam sendo descobertas depois, porém algumas permanecem em mistério. As ilustrações são enigmas a serem decifradas. Quanto mais detalhes elas mostram, menos sabemos sobre elas.” comenta Fabiano.

A descida do Seo Akuan usando asas de águia“Nesta gira vi o caboclo Akuan, uma das entidades principais que o Pai Fernando incorporava, flutuando sobre o terreiro com gigantescas asas de águia. Ele desceu lentamente até a mãe Lucilia Guimarães e encostou o dedo em sua testa. Logo depois, a mãe de santo incorporou-o e saravou a todos. Como era uma gira de fim de ano, foi liberado que os médiuns incorporassem todas as linhas. Então tentei representar nesta aquarela todas as entidades presentes – pretos velhos, ciganos, curumins e erês, boiadeiros, Pombagiras, exus… Pintei os desencarnados com uma luz azulada e os encarnados em tons quentes. Desta forma fica mais fácil de distinguir uns dos outros. Tinha até um erê sentado em cima da parede do congá.” – Fabiano Vianna
Com sua origem no sincretismo cultural, a Umbanda é a cara da miscigenação do povo brasileiro. Aplicar o olhar artístico para registrá-la com dignidade é um dos objetivos desse projeto.
“Uma de minhas inspirações para essa produção é o artista Carybé (1911-1997), que pintou a cultura baiana a partir da década de 50, especialmente aquela vinculada ao mundo do Candomblé. Com um estilo marcante, projetou nacional e internacionalmente as culturas religiosas da Bahia e do Brasil. Sua pintura é em sua explosão de cores, gestos sensuais, gente simples, trabalhadores, santos e orixás. Também Heitor dos Prazeres (1889-1966), pintou rodas de samba, brincadeiras de crianças, festas juninas, umbanda e candomblé, usando a tinta e o pincel como ferramentas para dar vazão para sua tristeza. A pintura de Heitor não parte da imaginação, nem da subjetividade, mas do seu convívio.”
Exu do Mato e erê Dudu“Quinta-feira foi a última gira do ano de 2024. Como Pai Bitty não pode estar presente, Mãe Raíssa e Pai Tico comandaram os trabalhos. Fui atraído em direção ao ponto dela, assim que incorporou o Seo Exu do Mato. Eu já tive a experiência de desenhá-lo outra vez, e a forma era outra. Penso que são formas diferentes dele se mostrar. Desta vez minha mão representou-o com chapéu e uma pena. Capa preta com fundo verde e uma extensa barba de feiticeiro. Trabalhou o tempo todo com algumas folhas na mão. Durante o desenho, e isso normalmente acontece, surgiu a figura de um guri com um peixe na mão junto ao trabalho. Na hora isso não fez sentido para mim e cheguei até a achar que estava fazendo besteira. Mas depois de finalizado, Mãe Raíssa veio me dizer que ela trabalha justamente com um erê de Iemanjá, chamado Dudu, que trabalha com peixes e cavalos. Eu não fazia ideia disso e fiquei impressionado. Como no desenho que fiz do Caboclo do Mar (…), as duas entidades trabalhavam juntas aqui. Direita e esquerda, num equilíbrio de forças. O erê trazendo alegria para o que o consulente precisava. Pelo chão, cocos abertos. E lá atrás, fiquei feliz de ter conseguido registrar as sambas cantando e dançando – na habitual coreografia que fazem. Há tempos que planejo registrar isso, as dancinhas da ‘Umbanda Jovem’. É difícil simular algo dinâmico em uma imagem estática. Mas enfim, o trabalho e a Umbanda em geral também são movimento, assim como as danças delas. Acho que o Sketchmacumba é o contraponto disso – um momento congelado, uma lembrança, mas que guarda dentro de si, dentro dos traços e das manchas, a vibração e aprendizados da gira. Viva Seo Exu do Mato e erê Dudu. Um salve ao consulente, à engoma, às sambas e todos que passaram por esta última gira no TPM.” – Fabiano Vianna
Ciganas Carmem e Pétala“Gira Neutra, Maio de 2019. Eu achei que este desenho era só sobre a cigana Carmen, mas descobri depois (assim como outros desenhos que fiz em outras giras), que ele fala muito mais coisas sobre os cambones e a consulente. Apareceu essa cigana com cabelos gigantes atrás da cambone Luciana. Depois ela me contou que é a cigana que ela trabalha – chamada Pétala. O cabelo vivo dela dá um axé na Luciana, e a outra ponta da cabeleira, liga com o infinito, o céu, as estrelas, galáxias e some no meio delas. Nesta sua vida foi uma andarilha, cruzou por diversas cidades e adotou crianças abandonadas. No desenho tem dois piás ao lado dela, e os 3 personagens olham em direção à Luciana. A cigana Carmen, no desenho, mostra a carta do Ceifador para a consulente, que pelo que pesquisei, tem algo a ver com novos ciclos no amor. A consulente está assustada, porque a imagem é forte – de uma caveira com uma foice e um monte de cabeças no chão. Mas é porque ela não sabe o que a cigana falou ainda. Eu acho que as três cartas à esquerda (a Torre, o Louco e o Valete de Ouro), no chão, são para mim, junto com a vela e o dado amarelo, pois são os elementos mais próximo de mim, do artista que vê a cena. Mas não faço ideia que mensagem querem passar. A terceira carta, aliás – do valete de ouro, foi a carta que a cigana deu para mim naquela noite. (Cigana Carmen entregou uma carta a cada médium da corrente). Há uma gata preta rondando as pernas da cambone Rita. Esta felina é a Chiquinha –que já desencarnou. A gata encosta num novelo amarelo (Rita é filha de Oxum) que por sua vez toca na carta do oito de copas (que tem algo a ver com ciclos da vida). A vida de um gato é um ciclo, dura uns 14 anos mais ou menos, mas talvez tenha a ver com ciclos na vida dela também, não sei. (foi o que me veio na mente). E aí, acho que as outras duas cartas são para a Rita também – o Sol e o Enforcado. Acho que este desenho tem mais simbologias do que parece. Como diz a fotógrafa Diane Arbus, ‘a fotografia (ou ilustração, neste caso), é um segredo sobre um segredo. Quando mais ela te mostra, menos você sabe sobre ela.'” Fabiano Vianna

Studio na Colab55

Seo Exu Mangueira“Antes da Mãe Denise se mudar para outra cidade, pude desenhar esta entidade que ela trabalha – Seo Exu Mangueira, numa gira de esquerda no Terreiro do Pai Maneco. Esta aquarela sempre me deixou meio hesitante e inseguro, com relação ao que vi e senti. Um trabalho forte, acompanhado de exus da falange dos morcegos – que voavam ao redor de uma nebulosa no céu e exus mirins no chão – trabalhando com frutas e cobras. Ao redor também estavam outros caveiras. A energia ao redor era tão densa que me empurrou contra o chão e eu fiz o sketch praticamente deitado, rente às cobras, folhas e frutas. Achei que eu tinha exagerado na representação dos exus mirins – com crânio pegando fogo. Depois uma irmã de corrente me explicou que, às vezes, eles decidem como querem ser vistos ou representados. E isso não significa que eles são sempre assim, ou se apresentam assim. O visual pode até ser uma brincadeira deles. Podem modificar a cada noite, a cada trabalho. Daí fiquei um pouco mais aliviado, e claro, confiante no que senti. Também gostei de desenhar, desta vez, bem rente ao solo, sobre o diagrama do ponto riscado. Laroyê!” – Fabiano Vianna
Caboclo do mar e Exu Tiriri“Novembro de 2024. Eu nunca tinha ido na gira do Pai Bitty, à tarde, no Terreiro do Pai Maneco. Ele trabalhou com o Caboclo do Mar na primeira parte. Sentei num cantinho, como sempre, e comecei a desenhar, perto da engoma. Não sabia o que estava acontecendo e deixei que as entidades movessem minha mão. Apareceu uma menina abraçada à consulente e um polvo rente ao chão. Num de seus tentáculos, uma chave. Claramente o sketchmacumba revelou traços marítimos – vi um marinheiro com sua gaivota logo atrás do trabalho e a estátua de Iemanjá com destaque no congá. O invisível se abre quando o grafite encosta o papel. É como se o desenho fosse uma janela. Veio o intervalo e continuei pintando. Chegou Seo Tiriri. Ao final, mostrei a aquarela finalizada ao Pai Bitty e então vieram as revelações – a consulente que chorava estava triste porque o assassino de sua filha havia sido libertado. Disse que o homicídio ocorreu há muitos anos. Por isso a menina abraçada a ela. Outros médiuns também me disseram ter sentido a presença dela bem próxima à mãe. Depois o Bitty me mostrou a guia nova do Seo Tiriri, com uma chave – que era igual à que eu desenhei num dos tentáculos do polvo. Acho que as duas entidades – caboclo e exu trabalharam juntos neste caso. Entrelaçados por tentáculos mágicos, em linhas e tempos opostos. ‘Exu destranca algo que aconteceu ontem com uma chave que abre a porta de agora’. Algo assim. Logo atrás da menina, Vovó Sabina, com seu manto azul e saia com costuras-de-mar. Ah, e quanto ao marinheiro, o que ele desejava comunicar? Não faço ideia, mas talvez o Pai Bitty saiba. Achei curioso que sua gaivota no braço lembra a forma como a águia do Caboclo Akuan é representada. Que gira intensa!” Fabiano Vianna
O equilíbrio do erê-pirata no TUPA visto por diversos pretos-velhos“Visitei o TUPATerreiro de Umbanda Povo Angola, que fica no Novo Mundo e fiz este desenho. Incrível como cada terreiro, apesar de praticarem a mesma Umbanda, são diferentes em alguns detalhes. O TUPA é uma casa com luzes e paredes azuis, o que me lembrou a atmosfera de alguns centros espíritas. Quando chamei ‘Pai Luís‘, ele me disse que ali não se chama pai de santo de pai. ‘É apenas Luís‘, me explicou. Todos os médiuns batem a cabeça ao mesmo tempo. Olhando o desenho ele ficou empolgado com o fato de terem aparecido entidades de diversas linhas – pretos velhos, curumins, piratas, erês, apesar de ter sido uma gira de marinheiros. E por ter registrado o preto velho e um pirata dando passe na assistência antes deles entrarem no local onde acontece a gira. É a prova de que os trabalhos já são feitos antes e do lado de fora também. Luís me contou que certa vez ele perguntou para um exu qual era a gira favorita dele e ele respondeu que era a de pretos e pretas velhas. Gostam de assistir e de vez em quando devem até participar. Ou seja, todos estão sempre presentes e o fluxo de entidades é constante. A organização de giras por temas é coisa nossa – dos encarnados. Legal como cada aquarela revela algo. Fiquei feliz de ter consigo capturar o espaço todo num só desenho. O menino que se equilibra sobre a mureta do meio é um erê-pirata. Ou seria um exu-mirim pirata? Não sei. Algumas etiquetas somos nós mesmos que criamos.” Fabiano Vianna
Boiadeiro Venâncio e o mistério da menina amarrada ao nó“Era gira neutra e algo me atraiu para desenhar o trabalho do Pai Bitty. Deixei que o traço me levasse, revelando dois lados – tal qual uma carta de baralho. Encarnados e Desencarnados? Não exatamente. As fronteiras são borradas. Uma área em degradê os une. Pombagiras e ciganos aparecem também por trás dos vivos. De um lado Pai Bitty trabalha com fogo amarelo, ponteiras, moedas sobre um prato. Do outro, o boiadeiro Venâncio com fogo azul (cor de cura, segundo me contou Bitty noutra gira), e ponteiras sobre uma panela de ferro. No contrário do consulente, um cão fofo. Amarrada ao cambone Édipo, o laço de uma corda segurada por uma menininha de cabelos escuros e franja. Depois que terminei, fui mostrar aos dois colegas de corrente, e fiquei impressionado ao descobrir que Édipo estava prestes a adotar uma menina num orfanato e que, a garotinha que surgiu em meu desenho era muito parecida. (Me mostrou foto dela) Creio hoje que a mensagem principal deste desenho veio para ele. Os dois estão conectados de alguma forma. Mas como sempre, a aquarela revela mais coisas do que posso supor agora. (Ah, sugiro que você gire a imagem agora e veja o desenho ao contrário. Ele foi feito para ser visto dos dois lados).” – Fabiano Vianna
Boiadeiro Venâncio e o mistério da menina amarrada ao nó (imagem invertida)
Meu primeiro encontro com Vô Conrado“Fiz esta aquarela na gira do Pai Beco numa quarta-feira. Eu e Raquel tínhamos ido para o batizado do filho de uma amiga na gira da Mãe Jô, no Terreiro do Pai Maneco. Quando terminou, nossa amiga Valéria deu a ideia de darmos um pulo lá embaixo, no anexo 2, que era noite de Exus. Nos falou sobre o Dado e a incorporação do Vô Conrado, que eu tinha que desenhá-lo e tal. Fomos. Por sorte eu sempre carrego meus materiais – canetas, papel, aquarelas. Então me aventurei. A loucura já começa na incorporação – auxiliado por dois ou três cambones, ao arriar completamente. Preto-velho que trabalha na esquerda. De volta ao seu toco, uma verdade dispensa: vasos, vasilhames, potes, folhas, charutos, xícaras, mel, garrafas… Me senti como se estivesse dentro da cozinha dele. Fui bem recebido ali no cantinho e comecei a rabiscar. Meio desenhava, meio assistia e ouvia os trabalhos. De vez em quando, na empolgação, ou em momentos mais eufóricos, o vô quase derrubava sua bengala (com a cabeça de um puma prateado na ponta) do colo, que era segurada por um dos cambones à postos, ao lado. É preciso estar muito atento. Milhos, lentilhas, feijões, côco, sementes e folhas que utiliza nos potes, voavam pela gira toda. Foram parar até pra cima do meu papel. Alguns sabores agreguei no desenho. Às vezes reparava nuns grãos lá no meio, sendo chutados ou pisados por outros médiuns, ou sendo incorporados por outros trabalhos nos tocos. Umbanda literalmente orgânica. Em volta dele senti a presença de outros exus, que na hora não soube identificar. Segui desenhando. Como sempre, deixei a mão me mostras as coisas no papel. Pombas giras baforando charutos, entidades surgiam no véu da fumaça do charuto do véio, bruxas de outrora. Um amigo depois sugeriu que desenhei Rosa Caveira e Zé Marmeleiro, pelas formas que se apresentaram nos traços. Também no desenho, uma mulher, acompanhando a amiga, esconde-se receosa atrás de um dos pilares e nem imagina que está sendo saravada pela fumaça do charuto de uma Rosa Caveira. Bem perto de mim, um exu mirim atirava bolas de gude num ponto riscado no chão. Ele usava um chapéu idêntico ao do vô, daquele tipo que se encontra em brechós. Tentei capturar o clima quente, alegre, colorido e festivo na aquarela. Quer dizer, na verdade utilizei mais coisas: Posca, acrílica, aquarela, nanquim e guache. Talvez influenciado pela mistura do vô, misturei também. Ah, sem falar da mostarda, do mel e do café que sem querer também se agregaram ao papel. Saí de lá com vontade de voltar mais vezes. Meio impossível de definir o Vô Conrado em apenas um desenho. Saravá ou Laroyê neste caso?”Fabiano Vianna

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